As raízes da saúde: entre o sagrado, os humores e a exclusão

Introdução

A saúde, em sua essência, transcende a mera ausência de doença; ela é um reflexo dinâmico das complexas interações entre fatores biológicos, ambientais, sociais, culturais e históricos que moldam a experiência humana.

Ao longo da história, as concepções de saúde e doença têm variado significativamente, influenciadas por crenças religiosas, filosóficas, científicas e pelas estruturas sociais e econômicas de cada época.

Compreender essa evolução é fundamental para reconhecer que a saúde não é um conceito estático e universal, mas sim uma construção social e histórica, intrinsecamente ligada aos valores e às prioridades de cada sociedade.

Este artigo, o primeiro de uma trilogia inspirada no estudo de Moacyr Scliar (2007), explora as transformações conceituais da saúde na história ocidental, desde as suas raízes na Antiguidade até a transição para a Baixa Idade Média.

A obra de Scliar oferece uma análise abrangente de como as ideias sobre saúde e doença se desenvolveram em diferentes contextos culturais e históricos, influenciando as práticas médicas e as políticas de saúde.

A trilogia está estruturada em três momentos fundamentais, cada um representando um período crucial na evolução do pensamento sobre a saúde: 1. As raízes da saúde (Antiguidade e Baixa Idade Média); 2. A transformação da saúde (Idade Moderna); e 3. A saúde no mundo moderno (Contemporaneidade).

Ao longo desses períodos, as concepções de saúde oscilaram entre explicações mágico-religiosas, abordagens filosóficas e o desenvolvimento de uma racionalidade científica, moldando as práticas de cuidado e as políticas de saúde.

Saúde e Ordem Simbólica na Antiguidade

Nas sociedades antigas, a saúde era frequentemente entendida como um estado de harmonia e equilíbrio entre o indivíduo e o cosmos, permeada por uma forte carga simbólica e espiritual. A doença, por sua vez, era vista como uma ruptura dessa harmonia, causada por forças externas, como a ira divina, a ação de espíritos malignos ou a quebra de tabus.

Em muitas culturas antigas, e ainda em algumas na atualidade, a figura do xamã ou sacerdote desempenhava um papel central na cura, atuando como intermediário entre o mundo humano e o mundo espiritual. Através de rituais, cânticos, danças e o uso de ervas medicinais, o xamã buscava restaurar o equilíbrio perdido e reintegrar o doente à comunidade.

Na tradição hebraica, a saúde e a doença também possuíam uma dimensão moral e religiosa, com a doença sendo frequentemente interpretada como um castigo divino pelo pecado ou uma provação da fé.

Doenças como a lepra carregavam um forte estigma social, resultando no isolamento e na exclusão dos doentes da comunidade.

Reflexão: De que forma ainda hoje associamos o estado de saúde ao valor ou legitimidade social de um indivíduo?

Hipócrates e a Racionalização da Saúde na Grécia

A saúde, para os gregos antigos, começa a ser interpretada de forma racional. Com Hipócrates, nasce uma visão que busca causas naturais para os fenômenos da vida e da doença.

Hipócrates de Cós (aproximadamente 460–370 a.C.) é reconhecido como o “pai da medicina” não apenas por sua influência teórica, mas por instaurar um novo paradigma de pensar o cuidado e o adoecer.

Vivendo numa época de transição entre o pensamento mítico e o racional, Hipócrates se destacou por abandonar explicações sobrenaturais e adotar um método empírico, baseado na observação clínica sistemática.

O Corpus Hippocraticum, uma coleção de cerca de 60 tratados, expressa os princípios fundamentais de sua escola, ainda que parte de sua autoria direta seja debatida. O valor está na organização e metodologia ali consolidadas.

A grande revolução hipocrática foi compreender que a saúde resulta do equilíbrio entre os quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. O corpo, nessa visão, funciona como um sistema regulado por leis naturais.

O desequilíbrio desses fluidos explicava as doenças. O papel do médico era ajudar a restabelecer essa harmonia por meio de dietas, repousos, práticas físicas e uso cuidadoso de remédios naturais.

Além do aspecto fisiológico, Hipócrates valorizava o meio ambiente como determinante da saúde. No tratado Ares, Águas e Lugares, analisa como o clima, os ventos, as estações e a água influenciam a incidência de doenças.

Essa obra pode ser considerada um marco precursor da saúde coletiva e da epidemiologia, ao propor que o ser humano deve ser compreendido em relação com seu território.

O pensamento hipocrático também antecipou o modelo biopsicossocial. Ele considerava a personalidade, o estilo de vida e o contexto emocional como fatores relevantes para a saúde do indivíduo.

Na ética médica, seu legado é igualmente duradouro. O Juramento de Hipócrates, com princípios como a confidencialidade, o respeito ao paciente e a obrigação de não causar dano (“primum non nocere”), influenciou séculos de prática profissional.

Hipócrates enfatizou que o bom médico deveria ser prudente, observador, moderado e ético — características que moldaram o ideal médico até os dias atuais.

Reflexão: Por que ainda associamos a saúde a um ideal de equilíbrio e medida, mesmo diante das tecnologias médicas atuais?

O método prognóstico hipocrático

A medicina hipocrática desenvolveu um sofisticado método prognóstico. A observação cuidadosa da evolução das doenças permitia antecipar seu curso e desfecho provável.

Hipócrates documentou meticulosamente sinais de mau prognóstico, como o “facies hipocrática” – aspecto característico do rosto de pacientes moribundos, com olhos encovados e nariz afilado.

O registro sistemático das observações clínicas deu origem às primeiras descrições detalhadas de doenças, permitindo seu reconhecimento e classificação, princípio fundamental da nosologia médica.

Os médicos hipocráticos acreditavam que observar e acompanhar o curso natural das doenças era tão importante quanto intervir, reconhecendo o poder de autocura do organismo (vis medicatrix naturae).

Transição Histórica: da Antiguidade à Medicina Medieval

A medicina clássica de Hipócrates e Galeno exerceu uma influência duradoura no mundo antigo e medieval, sendo preservada e transmitida através dos séculos por diferentes culturas.

Após a queda do Império Romano, os saberes médicos clássicos foram preservados e expandidos por estudiosos árabes, que traduziram e comentaram as obras de Hipócrates e Galeno, contribuindo para o desenvolvimento da medicina islâmica.

A medicina romano-bizantina desenvolveu instituições de saúde pública, como hospitais e sistemas de saneamento, demonstrando uma preocupação com o bem-estar coletivo.

Médicos como Dioscórides contribuíram para o conhecimento farmacológico, compilando informações sobre plantas medicinais e suas propriedades terapêuticas.

O mundo islâmico desempenhou um papel crucial na preservação e no avanço da medicina, com figuras como Avicena e Al-Razi realizando importantes contribuições para a teoria e a prática médica.

Avicena, em particular, com sua obra “O Cânon da Medicina“, sintetizou e organizou o conhecimento médico da época, influenciando a medicina europeia por séculos.

A Baixa Idade Média e a Saúde como Ordem Moral

Na Baixa Idade Média (séculos XI a XV), a compreensão da saúde e da doença foi profundamente influenciada pelo contexto religioso, social e político da época.

A Igreja Católica desempenhou um papel central na sociedade medieval, e a doença era frequentemente interpretada como um castigo divino pelo pecado ou uma provação da fé.

A medicina medieval combinava elementos da medicina clássica com crenças religiosas e práticas populares de cura. Os mosteiros desempenhavam um papel importante no cuidado dos doentes, oferecendo abrigo e tratamento em hospitais e enfermarias.

O crescimento das cidades e o aumento da densidade populacional na Baixa Idade Média trouxeram novos desafios para a saúde pública, como a propagação de epidemias e a falta de saneamento adequado.

As autoridades municipais começaram a implementar medidas de saúde pública, como quarentenas e regulamentações sanitárias, para tentar controlar a disseminação de doenças.

A Escola Médica de Salerno, na Itália, foi um importante centro de ensino médico na Idade Média, contribuindo para a preservação e a transmissão do conhecimento médico clássico.

O Regimen Sanitatis Salernitanum, um famoso poema didático sobre saúde, enfatizava a importância da dieta, do exercício e do estilo de vida para a manutenção do bem-estar.

As universidades medievais institucionalizaram o ensino da medicina, mas o conhecimento médico ainda era fortemente baseado em textos clássicos e na teoria dos humores.

A medicina erudita, praticada por médicos formados nas universidades, coexistia com as práticas populares de cura, realizadas por curandeiros, parteiras e outros praticantes não acadêmicos.

A Peste Negra, que devastou a Europa no século XIV, teve um impacto profundo na sociedade e na medicina medieval. A pandemia desafiou as explicações tradicionais sobre a doença e levou ao desenvolvimento de novas medidas de saúde pública, como o isolamento de doentes e a quarentena de navios e pessoas.

A segregação dos leprosos continuou na Idade Média, refletindo o medo da contaminação e as crenças sobre a impureza da doença.

A farmacologia medieval utilizava uma variedade de substâncias naturais e preparações alquímicas, buscando encontrar curas para as doenças.

A “medicina dos pobres“, praticada por mulheres e outros grupos marginalizados, frequentemente envolvia o uso de ervas medicinais e remédios caseiros, mas enfrentava perseguição e desvalorização por parte das autoridades médicas e religiosas.

Reflexão: Como ainda reproduzimos hoje práticas de exclusão baseadas na aparência, comportamento ou origem social do sujeito doente?

Síntese e Transição para o Próximo Artigo

Este artigo explorou as raízes históricas do conceito de saúde, desde as concepções mágico-religiosas da Antiguidade até a transição para a medicina medieval.

Ao longo desse período, a saúde foi entendida de diversas maneiras, como um dom divino, um estado de equilíbrio com a natureza, um reflexo da ordem social e moral, e um objeto de estudo da filosofia e da medicina.

A Antiguidade nos legou a racionalidade hipocrática, que buscava explicar a doença através de causas naturais e da observação clínica, enquanto a Baixa Idade Média reinterpretou esses conceitos à luz da religião e dos desafios sociais da época.

Essas diferentes concepções de saúde moldaram as práticas médicas, as políticas de saúde e as atitudes em relação aos doentes, influenciando a forma como as sociedades ocidentais lidaram com a saúde e a doença ao longo da história.

No próximo artigo, “A Transformação da Saúde: Entre o Pecado, a Química e o Silêncio dos Órgãos“, exploraremos como a Idade Moderna revolucionou o conceito de saúde, com o surgimento da ciência moderna, a Reforma Protestante e as transformações sociais e econômicas que marcaram esse período.


Fonte:
SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1): 29-41, 2007.

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