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Saúde, Atividade Física

Como a saúde era entendida na Idade Média?

Saúde não é apenas um estado biológico, mas um reflexo da forma como as sociedades entendem o corpo, o mundo e os vínculos entre eles.

Como vimos no primeiro artigo desta trilogia, a história da saúde é também a história das ideias, das crenças e das práticas que envolvem o viver e o adoecer.

Antiguidade e Idade Média foram marcadas por interpretações simbólicas, espirituais e comunitárias da saúde.

A doença era associada ao pecado, ao desequilíbrio moral e à ruptura com a ordem natural. A cura, por sua vez, era mediada por rituais, orações ou harmonizações com o cosmos.

Hipócrates representou uma virada racional ao propor causas naturais para as doenças, valorizando a observação e o equilíbrio dos humores. Mesmo assim, essa racionalidade coexistiu por séculos com explicações religiosas e práticas místicas.

Na Idade Média, como vimos, não rejeitou a razão, mas a integrou à teologia cristã. O corpo era visto como templo de Deus, e o cuidado da saúde envolvia virtude, temperança e submissão à vontade divina. A medicina servia tanto ao corpo quanto à alma.

A Saúde, portanto, já era nesse período uma construção social, atravessada por valores religiosos, morais e comunitários. As práticas médicas refletiam as crenças dominantes e os desafios históricos enfrentados por cada sociedade.

A Modernidade traria mudanças radicais. Os séculos XVI a XVIII marcaram o nascimento de uma nova visão: a saúde como fenômeno mensurável, estudado em laboratórios, associado à química, ao funcionamento mecânico e à estatística.

Este segundo artigo da série percorre essa transição. Do final da Idade Média ao início da ciência moderna, investigamos como a saúde passou a ser entendida como resultado de processos materiais e observáveis, ainda que influenciada por heranças do pensamento religioso e moral.

Reflexão: Se a saúde é uma construção histórica, que visões do passado ainda ecoam em nossos conceitos atuais sobre o corpo e a doença?

Saúde no século XIX

Saúde nas cidades do final da Idade Média enfrentava novos desafios. O crescimento urbano, a aglomeração populacional e a precariedade dos serviços de saneamento agravavam as condições de vida.

Doenças contagiosas proliferavam nos centros urbanos. A falta de higiene, a escassez de alimentos de qualidade e a ausência de políticas públicas estruturadas contribuíam para altos índices de mortalidade.

Transformações sociais, como a ampliação do comércio e o surgimento de uma burguesia urbana, criaram novas formas de circulação de pessoas, mercadorias e também de agentes infecciosos.

Reflexão: Como as mudanças nos modos de vida moldam a saúde do ser humano coletivo ao longo da história?

Do pecado ao elemento químico

Saúde ainda era, em parte, compreendida a partir de explicações religiosas. A doença seguia sendo vista como consequência de uma vida em desordem moral ou espiritual.

Ruptura com essa visão começou a acontecer com figuras como Paracelso, que rompeu com a explicação do adoecimento como punição. Para ele, a origem da enfermidade estava em causas externas ao ser humano.

Química médica substituiu os antigos rituais por experimentos com metais e substâncias. O uso do mercúrio no tratamento da sífilis é um exemplo do avanço no entendimento material da saúde e da doença.

Reflexão: O que muda quando o sofrimento humano deixa de ser interpretado como falha moral e passa a ser tratado como reação química?

Quando a fé encontra o laboratório

Saúde nesse período não se libertou completamente das influências espirituais. A medicina ainda coexistia com práticas religiosas, e muitos tratamentos envolviam orações e peregrinações.

Paracelso, embora revolucionário, também foi influenciado pela alquimia e pelo misticismo. Sua prática médica integrava elementos da tradição esotérica com observações empíricas.

Conhecimento científico começava a se firmar como base para o cuidado da saúde. A valorização da experiência e do experimento abria caminho para novas formas de compreender o adoecer.

Reflexão: Será que ciência e crença sempre caminharam em sentidos opostos, ou há pontos de convergência na história da saúde?

Século XVII: funcionamento humano

Saúde no século XVII passou a ser compreendida em meio a um cenário de profundas transformações sociais e intelectuais. O fortalecimento dos Estados absolutistas e da ciência moderna alterou a forma como o ser humano era visto.

Centralização política e desenvolvimento econômico exigiam uma população funcional. A racionalização das práticas sociais, impulsionada pelo pensamento cartesiano, influenciava a organização do saber médico.

Disciplina social se tornava ideal de ordem. Ser saudável era, também, ser útil, controlado, previsível. Esse ideal moldava políticas de saúde e o entendimento do adoecimento como falha funcional.

Reflexão: Quando a saúde se vincula à produtividade, o que acontece com os que adoecem fora dos padrões?

O ser humano como máquina

Saúde, na filosofia de René Descartes (1596–1650), começa a ser compreendida a partir da separação entre mente e corpo. O corpo humano era visto como uma máquina complexa, regida por leis naturais.

Dualismo cartesiano afirmava que a mente (res cogitans) era distinta da matéria (res extensa), permitindo que o corpo fosse estudado como objeto físico, separado da alma.

Influência anatômica crescia com os estudos sobre órgãos e sistemas. A doença deixava de ser um desequilíbrio geral para ser localizada e examinada em partes específicas do organismo.

Reflexão: Quando dividimos o ser humano em mente e matéria, o que deixamos de enxergar em sua totalidade?

As engrenagens da indústria e o adoecer coletivo

Saúde também começou a ser impactada pelas mudanças produtivas que antecederam a Revolução Industrial. A introdução de máquinas, novas rotinas de trabalho e organização fabril alteraram o modo de vida europeu.

Condições de trabalho tornaram-se mais exigentes e impessoais. O esforço repetitivo, o ambiente insalubre e a sobrecarga física afetavam diretamente a saúde do trabalhador, ainda sem qualquer tipo de proteção legal.

Proletarização inicial já gerava uma massa de trabalhadores urbanos vulneráveis ao adoecimento. A ausência de saneamento e de políticas públicas só agravava esse cenário.

Reflexão: Quando o progresso técnico ignora o bem-estar, não estaríamos apenas sofisticando as formas de sofrimento humano?

Novas lentes para enxergar o adoecimento

Saúde foi redefinida a partir da observação direta do funcionamento físico. O avanço da anatomia e da fisiologia permitiu investigar as estruturas internas do ser humano com maior precisão.

Hospitais deixaram de ser apenas lugares de acolhimento para se tornarem centros de observação clínica. Isso permitiu avanços diagnósticos e classificações mais sistemáticas das doenças.

Protagonistas da mudança, como William Harvey, descobriram a circulação sanguínea, revolucionando o conhecimento sobre o funcionamento do corpo e abrindo caminho para a medicina experimental.

Reflexão: A busca por entender os mecanismos do ser humano melhorou a medicina — mas será que ela também trouxe o risco de reduzir a pessoa a um conjunto de peças?

Século XVIII: a saúde como silêncio dos órgãos

Racionalidade iluminista e controle social

Saúde no século XVIII foi moldada pela ascensão do pensamento iluminista. A razão tornou-se o princípio organizador da vida social, política e científica na Europa.

Revoluções sociais, como a Revolução Francesa, e o fortalecimento do Estado moderno exigiam controle populacional e maior conhecimento sobre os corpos dos cidadãos.

Administração da vida passou a ser tarefa dos governos. O surgimento da estatística e da demografia revelou novas formas de quantificar o adoecer, ampliando o controle institucional sobre a saúde da população.

Reflexão: Quando a saúde se torna um dado de Estado, até que ponto nossas vidas passam a ser geridas como números?

A normalização da saúde

Saúde, nesse período, passou a ser definida por parâmetros de normalidade. O ser humano saudável era aquele que não manifestava sintomas nem alterações detectáveis.

François Xavier Bichat (1771–1802), médico francês, formulou uma definição influente: saúde seria o “silêncio dos órgãos”. Essa metáfora expressava a ideia de que o bom funcionamento é aquele que não chama atenção.

Atenção médica concentrava-se na anatomia patológica. A morte, as autópsias e os exames post-mortem tornaram-se fontes legítimas de conhecimento sobre a vida e suas falhas.

Reflexão: Se a saúde é aquilo que não se percebe, será que nos tornamos menos sensíveis aos sinais silenciosos que pedem cuidado?

Entre a frieza da ciência e a sensibilidade do romantismo

Saúde, enquanto conceito objetivo, caminhava junto à construção de uma ciência médica cada vez mais técnica. Mas, em paralelo, o movimento romântico trazia novas formas de olhar o adoecer.

Artistas e intelectuais viam na doença uma espécie de revelação do ser. A melancolia, a tuberculose e outras condições ganhavam contornos simbólicos e até estéticos.

Ambivalência cultural marcou esse período: enquanto médicos buscavam silenciar os órgãos com precisão diagnóstica, poetas e músicos viam no sofrimento um sinal de profundidade e autenticidade.

Reflexão: É possível que, ao negar o valor simbólico da doença, também percamos parte do sentido humano do adoecer?

Transição para o século XIX: a saúde entre números e instituições

Saúde, ao entrar no século XIX, passou a ser objeto de políticas mais amplas, integrando-se aos projetos de Estado. A Revolução Industrial modificou profundamente os modos de vida nas cidades.

Urbanização acelerada, péssimas condições de moradia, superpopulação e falta de saneamento agravaram o adoecimento entre os trabalhadores. As doenças deixaram de ser vistas apenas como questões individuais.

Intervenção estatal tornou-se necessária. Surgia a ideia de que o bem-estar coletivo exigia ações organizadas. A saúde passou a ser parte de uma agenda institucional, com estatísticas, relatórios e diagnósticos populacionais.

Reflexão: Quando o cuidado com a saúde se torna responsabilidade coletiva, como equilibrar liberdade individual e bem comum?

A quantificação da doença

Saúde, nesse novo cenário, começou a ser avaliada por meio de dados. O uso da estatística permitiu comparar regiões, populações e classes sociais em relação à incidência de doenças.

William Farr (1807–1883), na Inglaterra, foi pioneiro ao integrar medicina e estatística. Seus relatórios de mortalidade revelavam desigualdades entre os distritos “sadios” e “não-sadios” da sociedade.

John Snow (1813–1858) demonstrou, no caso do cólera em Londres, como o adoecimento estava ligado a fatores ambientais — um marco na consolidação da epidemiologia moderna.

Reflexão: O que os números dizem — e o que deixam de dizer — sobre a complexidade da saúde humana?

Do controle sanitário à justiça social

Saúde, embora tratada tecnicamente, começou a ser entendida também como questão de justiça social. A precariedade das condições de vida das classes populares ganhou visibilidade e críticas contundentes.

Edwin Chadwick, com seu relatório sobre as condições sanitárias dos trabalhadores britânicos, impulsionou a criação de leis e conselhos de saúde pública. A medicina começava a dialogar com o campo da política.

Friedrich Engels, por sua vez, descreveu o vínculo entre capitalismo, exploração do trabalho e adoecimento. Sua obra denunciava que a saúde não era apenas uma questão médica, mas também social e econômica.

Reflexão: Se a saúde depende do ambiente e das estruturas sociais, como promover bem-estar sem transformar também as condições de vida?

Considerações finais

Saúde, entre os séculos XVI e XVIII, deixou de ser compreendida apenas como expressão da fé ou equilíbrio moral e passou a ser investigada como fenômeno natural, químico e mecânico.

Essa transição, contudo, não anulou o passado: reorganizou antigas crenças sob novas formas de linguagem e controle.

Mudanças sociais como a urbanização, o surgimento do Estado moderno e os primeiros efeitos da industrialização influenciaram diretamente o adoecer.

A saúde do ser humano passou a ser objeto de interesse estatal, científico e econômico, demandando novos modos de gestão e conhecimento.

Avanços científicos, protagonizados por nomes como Paracelso, Descartes, Harvey e Bichat, consolidaram uma visão cada vez mais racional e fragmentada do ser humano.

A doença foi sendo localizada, classificada e quantificada, dando origem ao modelo biomédico moderno.

Ao compreender como a saúde foi sendo construída ao longo da história, podemos olhar criticamente para o presente — e abrir espaço para novos sentidos de cuidado.

No próximo artigo da trilogia, “A saúde no mundo moderno: estatísticas, instituições e desigualdades”, avançaremos para os séculos XIX e XX, quando a saúde se transforma em política pública, indicador social e instrumento de biopoder. Continue conosco nessa jornada de descoberta e reflexão.


Fonte:
SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1): 29-41, 2007.

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Marcos Maciel (Ph.D)
Sou Ph.D. em Estudos do Lazer, e investigo as relações entre atividade física, saúde, bem-estar, espiritualidade, ócio e lazer.