O debate acadêmico sobre o lazer tem se consolidado nas últimas décadas, sobretudo nos contextos de língua inglesa, com avanços significativos na compreensão filosófica, psicológica e sociocultural do fenômeno.

Entretanto, observa-se um baixo nível de diálogo entre a produção cristã sobre o lazer e a literatura dos Estudos do Lazer — não por uma oposição explícita, mas por um processo de desconexão mútua e silenciamento discursivo entre os campos.

Este artigo parte do texto de Paul Heintzman, com tradução de Marcos Gonçalves Maciel e Saulo Neves de Oliveira, publicado na Revista Brasileira de Estudos do Lazer. A obra examina de forma crítica as relações (ou sua ausência) entre os escritos cristãos sobre lazer e os marcos conceituais predominantes nos Estudos do Lazer.

A partir dessa base, buscamos discutir como essa distância pode ser compreendida, enfrentada e, em parte, superada.

Nosso foco está em contribuir para a ampliação do debate no contexto ibero-americano, onde a integração entre fé cristã e lazer ainda é incipiente e demanda maior aprofundamento.

O presente texto é o primeiro de dois artigos que, com base na análise de Heintzman, exploram tanto as desconexões históricas quanto os potenciais pontos de convergência entre esses campos, propondo caminhos para uma reflexão teológica mais atenta ao lazer como dimensão legítima da vida cristã.

Lazer, fé e isolamento conceitual: uma desconexão histórica

O artigo de Paul Heintzman, oferece um panorama detalhado da produção cristã sobre o lazer nas últimas décadas. Desde autores clássicos como Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino até pensadores contemporâneos como Joseph Pieper, Ryken e Neville, há um legado significativo de reflexões teológicas e espirituais sobre o tema.

No entanto, esse acúmulo de conhecimento cristão permanece, em grande parte, desconectado da literatura dominante dos Estudos do Lazer.

Essa desconexão não é fruto de hostilidade, mas de isolamentos recíprocos entre duas comunidades acadêmicas que avançaram por trilhas paralelas. Os estudiosos cristãos, com raras exceções, não se engajaram diretamente com conceitos desenvolvidos pelos Estudos do Lazer — como lazer sério, lazer como estado mental etc.

Ao mesmo tempo, a literatura acadêmica em lazer pouco reconheceu ou incorporou a tradição cristã como um campo legítimo de reflexão sobre o uso do tempo, a recreação e a interioridade.

Heintzman observa que, com exceção de autores como Pieper, boa parte dos livros cristãos sobre lazer circula em nichos editoriais próprios, com visibilidade limitada fora do mundo eclesial.

Muitos não dialogam com os conceitos estruturantes do campo e, por isso, acabam invisibilizados nos debates acadêmicos seculares. Por outro lado, os Estudos do Lazer, ao não se aproximarem da produção cristã, perdem a oportunidade de incorporar uma tradição milenar que articula trabalho, descanso e sentido da vida em perspectiva escatológica, ética e comunitária.

No contexto ibero-americano, essa lacuna torna-se ainda mais visível. Poucos autores cristãos evangélicos se dedicaram sistematicamente à interface entre lazer e teologia, e quase nenhum esforço editorial foi feito para integrar essas vozes ao debate público.

Como resultado, o discurso cristão sobre o lazer segue marginalizado, tanto nos espaços confessionais quanto nas universidades, dificultando a construção de uma visão mais ampla, crítica e contextualizada do fenômeno.

Reconhecer essa “solidão mútua” — para usar a expressão do próprio Heintzman — é o primeiro passo para superar o distanciamento histórico e iniciar um caminho de escuta, tradução e diálogo entre os campos.

A construção dessa ponte exige abertura hermenêutica, rigor acadêmico e sensibilidade pastoral, especialmente num cenário onde os sentidos do tempo e do corpo seguem em disputa.

Referências cristãs ignoradas nos Estudos do Lazer: um desequilíbrio de vozes

Embora exista uma tradição significativa de autores cristãos evangélicos refletindo sobre o lazer no contexto anglo-saxônico, poucos deles são reconhecidos ou citados na literatura dominante dos Estudos do Lazer fora desse ciclo.

Esse desequilíbrio de vozes é um dos pontos centrais levantados por Paul Heintzman. A ausência não decorre da inexistência de material cristão, mas da baixa interlocução entre os campos, que operam em registros conceituais e epistemológicos distintos.

Heintzman mostra, por exemplo, que obras como Work and Leisure in Christian Perspective (Ryken, 1987/2002) e Free Time: Towards a Theology of Leisure (Neville, 2004) possuem um número expressivo de citações em bases acadêmicas como o Google Scholar.

No entanto, a maioria dessas menções parte de outros estudiosos cristãos, e apenas uma fração delas ocorre dentro dos Estudos do Lazer.

O mesmo acontece com autores como Harold Lehman, David Spence ou Robert Johnston, cujas obras raramente figuram em currículos de cursos ou em bibliografias técnicas do campo.

A exceção mais notável é Joseph Pieper. Seu livro Leisure: The Basis of Culture é amplamente citado por estudiosos do lazer, sobretudo por sua definição clássica de lazer como “uma atitude mental, uma condição da alma… uma atitude receptiva da mente, uma atitude contemplativa”.

Ainda assim, mesmo Pieper costuma ser apropriado fora de seu contexto teológico original, e sua vinculação à espiritualidade cristã é frequentemente desconsiderada nas interpretações contemporâneas.

Esse cenário evidencia que a tradição cristã evangélica sobre o lazer segue marginalizada nos Estudos do Lazer, não por falta de conteúdo, mas por ausência de mediação conceitual.

A lacuna não está apenas na visibilidade dos autores, mas também na ausência de categorias teológicas que possam dialogar com os marcos teóricos seculares. Há um descompasso metodológico que precisa ser enfrentado com seriedade.

No contexto ibero-americano, esse desafio é ainda mais urgente. A presença de literatura cristã traduzida é escassa, e a produção original em português ou espanhol é rara.

Isso limita que as igrejas, universidades e centros de pesquisa locais reconheçam a relevância do tema. Recuperar essas vozes, contextualizá-las e traduzi-las para o debate acadêmico é um passo necessário para reequilibrar o campo e contribuir para a construção de um conhecimento mais plural e enraizado na experiência da fé.

Conceitos evangélicos ausentes: lazer sério, estado mental e outras lacunas conceituais

Um dos pontos mais contundentes da análise de Heintzman diz respeito à ausência de diálogo entre a literatura cristã evangélica sobre o lazer e os principais conceitos estruturantes dos Estudos do Lazer contemporâneos.

Apesar de existirem diversas obras cristãs relevantes no campo da teologia prática e da espiritualidade, poucas delas se engajam com as categorias desenvolvidas por pesquisadores das ciências sociais ao longo das últimas décadas.

Dentre os conceitos mais ignorados, destaca-se a ideia de lazer como estado mental. Presente na psicologia social desde os anos 1980, essa abordagem entende o lazer não como uma atividade específica ou um tempo objetivo, mas como uma vivência subjetiva de liberdade, prazer e escolha.

Autores como Csikszentmihalyi (com seu conceito de flow) influenciaram fortemente esse paradigma, que é central nos Estudos do Lazer — mas ainda pouco discutido nos círculos evangélicos.

Outro conjunto conceitual ausente nas obras cristãs sobre o tema envolve o modelo de lazer sério, proposto por Robert Stebbins. Essa perspectiva diferencia o lazer casual (sem compromisso), o lazer baseado em projetos (atividades com começo, meio e fim, realizadas esporadicamente), e o lazer sério (envolvimento profundo, identitário e disciplinado com uma atividade).

Embora esse modelo seja amplamente utilizado nas pesquisas acadêmicas sobre lazer, raramente encontra ressonância na literatura cristã, que tende a manter definições mais tradicionais ou normativas.

A crítica de Heintzman, nesse ponto, não visa deslegitimar a teologia cristã do lazer, mas apontar sua baixa interlocução com os marcos teóricos mais recentes do campo.

Essa distância metodológica limita o alcance dos escritos evangélicos e reduz seu impacto no ambiente acadêmico.

Além disso, impede que a teologia dialogue com categorias analíticas capazes de ampliar sua compreensão do lazer como dimensão existencial e social.

Para o contexto ibero-americano, essa lacuna representa uma oportunidade. Estudiosos cristãos do lazer podem — e devem — se apropriar criticamente desses conceitos, reinterpretando-os à luz da fé, sem renunciar a seu fundamento bíblico.

Assim, será possível promover uma teologia do lazer que seja, ao mesmo tempo, fiel à tradição cristã e sensível às linguagens do mundo acadêmico.

Para uma teologia do lazer mais conectada, crítica e relevante

A análise proposta por Paul Heintzman, traduzida por Marcos Maciel e Saulo Oliveira, revela uma realidade desconfortável, mas fértil: o campo dos Estudos do Lazer e a produção teológica cristã — especialmente a evangélica — caminharam por décadas como duas solidões paralelas, raramente se escutando, se referenciando ou colaborando entre si.

O resultado é uma perda mútua: o discurso cristão sobre o lazer segue confinado a nichos confessionais, enquanto os Estudos do Lazer ignoram uma tradição espiritual milenar que poderia enriquecer suas abordagens antropológicas e éticas.

Como vimos, os autores cristãos evangélicos ainda operam majoritariamente a partir de categorias clássicas (tempo, atividade, virtude), com pouca aproximação dos conceitos mais influentes nas ciências sociais contemporâneas — como o lazer sério, o lazer como estado mental, ou a interseção entre lazer, identidade e experiência subjetiva.

Essa distância reduz as possibilidades de diálogo e enfraquece o impacto das reflexões cristãs nos espaços acadêmicos e formativos mais amplos.

Ao mesmo tempo, a literatura dos Estudos do Lazer também falha ao ignorar ou subestimar os escritos cristãos sobre o tema.

Há poucas referências, poucas leituras contextualizadas, e uma tendência a reforçar caricaturas históricas, como a representação negativa dos puritanos ou o uso isolado de versículos bíblicos fora de seu contexto.

Essa falta de escuta produz um conhecimento parcial, fragmentado e muitas vezes desinformado.

No contexto ibero-americano, esses desafios são ainda mais agudos. A ausência de bibliografia em português e espanhol, aliada ao pouco engajamento das universidades e instituições confessionais com o tema, cria um vácuo de pensamento que precisa ser preenchido com urgência. Contribuir para essa tarefa é, também, um dos objetivos centrais deste blog.

Este foi o primeiro de dois artigos inspirados no texto original de Heintzman, intitulado “Estudos do lazer e conhecimento cristão: duas solidões?”.

Neste primeiro texto, exploramos as causas e implicações do distanciamento entre os campos. No próximo artigo, voltaremos nosso olhar para o futuro: como o recente interesse dos Estudos do Lazer pela espiritualidade — especialmente nas abordagens qualitativas — pode abrir caminhos para uma teologia do lazer mais dialogal, contextualizada e transformadora.

Superar o isolamento não é apenas uma tarefa teórica. É um chamado para construir pontes entre fé e cultura, entre pesquisa e experiência, entre o mundo da academia e a vida vivida nas comunidades cristãs. E essa ponte começa com escuta, humildade e compromisso com o bem comum.


Fonte:

Heintzman, P., Maciel, M. G., & Oliveira, S. N. (2021). Estudos do lazer e conhecimento cristão: Duas solidões? Revista Brasileira de Estudos do Lazer, 24(3), 575–597. https://doi.org/10.35699/2447-6218.2021.36334

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