No primeiro artigo desta trilogia, refletimos sobre o discurso religioso como forma de poder simbólico, com base no texto de Maciel, Carvalho e Vieira Junior (2016). Mostramos como determinadas interpretações teológicas podem funcionar como mecanismos de normatização do comportamento social, particularmente no que se refere ao julgamento e à repressão do ócio na tradição cristã.
Dando continuidade à série, este segundo artigo volta-se diretamente à Bíblia como fonte de compreensão sobre o ócio. A partir de uma análise hermenêutica, os autores propõem que o descanso, a celebração e a interrupção do trabalho são experiências legítimas na espiritualidade do povo de Deus — práticas que desafiam visões reducionistas ou moralistas sobre o tempo não produtivo.
A análise apresentada pelo artigo original é organizada em torno de três eixos principais: o uso das Escrituras como base teológica para compreender o ócio; as festas e celebrações do Antigo Testamento como momentos de vivência comunitária e suspensão da produção; e, por fim, o reconhecimento do ócio como uma prática com valor simbólico, teológico e ético.
Este artigo, portanto, não pretende adaptar o conceito moderno de lazer à narrativa bíblica, mas reconhecer nas Escrituras sinais de uma vivência do tempo marcada pela gratuidade, pela comunhão e pela celebração da vida. Um tempo que não se mede por produtividade, mas por presença, memória e adoração.
A Bíblia como referência para compreender o ócio
O ponto de partida da análise de Maciel, Carvalho e Vieira Junior (2016) é o reconhecimento da Bíblia como fonte central de autoridade na tradição reformada.
Toda reflexão teológica, inclusive sobre o ócio, deve estar ancorada nas Escrituras, que orientam tanto a fé quanto a prática do povo cristão.
No entanto, os autores destacam que essa leitura não pode ser literalista nem desvinculada de critérios hermenêuticos.
Interpretar a Bíblia exige considerar o contexto histórico, cultural e teológico de cada texto. Isso impede que passagens isoladas sejam usadas para justificar discursos moralizantes ou condenatórios sem base bíblica sólida.
Com isso, o artigo propõe que a Bíblia não deve servir para reforçar uma visão negativa do ócio, mas para iluminar as formas pelas quais o povo de Deus viveu, celebrou e santificou o tempo de descanso.
A cessação das atividades produtivas, longe de ser vista como improdutividade ou pecado, surge nas Escrituras como espaço de bênção, renovação e reconexão com Deus.
A hermenêutica reformada, adotada pelos autores, entende que a interpretação bíblica não se limita ao conteúdo textual, mas envolve a escuta da experiência vivida.
O ócio, nesse contexto, é reconhecido como prática legítima quando vinculado ao descanso, à memória da criação, à libertação e à comunhão com o sagrado.
Portanto, a base bíblica oferece subsídios consistentes para pensar o ócio não como ausência de dever, mas como parte da vida diante de Deus.
É nesse solo que se constrói a possibilidade de reconhecer, teologicamente, a interrupção do trabalho como tempo fecundo — um tempo que não se mede por produção, mas por presença.
Celebrações e festas no Antigo Testamento
A análise de Maciel, Carvalho e Vieira Junior (2016) evidencia que, no Antigo Testamento, o ócio está presente nas festas e celebrações como parte integrante da espiritualidade do povo de Deus.
Nessas ocasiões, havia uma suspensão consciente do trabalho, não por negligência, mas por obediência, gratidão e alegria coletiva.
As festas bíblicas eram espaços de memória e renovação. A Festa dos Tabernáculos, por exemplo, celebrava a colheita e relembrava a peregrinação no deserto.
Durante sete dias, o povo interrompia suas atividades produtivas, reunia-se em tendas, cantava, dançava e descansava. O ócio era, ali, expressão de fé e reconhecimento da provisão divina (Lv 23.33–43).
Destacamos alguns versículos dessa citação: (34) “Fala aos filhos de Israel, dizendo: Aos quinze dias deste mês sétimo será a festa dos tabernáculos ao Senhor por sete dias.”; (39) “Porém aos quinze dias do mês sétimo, quando tiverdes recolhido do fruto da terra, celebrareis a festa do Senhor por sete dias; no primeiro dia haverá descanso, e no oitavo dia haverá descanso”.
Outro exemplo é o Ano do Jubileu, celebrado a cada cinquenta anos. Nesse tempo, a terra descansava, as dívidas eram perdoadas e os escravos libertos (Lv 25:1-4),
“Falou mais o Senhor a Moisés no monte Sinai, dizendo: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando tiverdes entrado na terra, que eu vos dou, então a terra descansará um sábado ao Senhor. Seis anos semearás a tua terra, e seis anos podarás a tua vinha, e colherás os seus frutos; Porém, ao sétimo ano haverá sábado de descanso para a terra, um sábado ao Senhor; não semearás o teu campo nem podarás a tua vinha”.
A cessação do trabalho tinha implicações sociais profundas: restaurava relações, redistribuía posses e reorientava a vida para a justiça e a misericórdia.
Também se destacam as festas de peregrinação — como a Páscoa, o Pentecostes e os Tabernáculos — que exigiam deslocamento, comunhão e pausa na rotina. Eram eventos nos quais o povo interrompia o cotidiano para celebrar os feitos de Deus e fortalecer os vínculos comunitários.
Essas práticas revelam que, na tradição bíblica, o ócio não era um luxo reservado a poucos, mas uma dimensão do tempo acessível a todos. Ele fazia parte de um ritmo de vida em que o descanso era sagrado, a celebração era legítima e a produtividade não era o único critério de valor.
Portanto, o Antigo Testamento apresenta o ócio como um espaço de reconstrução simbólica e relacional. Tempo de festa, tempo de pausa, tempo de Deus. Um tempo que reafirma que a vida não se resume ao fazer, mas também ao celebrar.
O ócio como interrupção e memória
A leitura proposta por Maciel, Carvalho e Vieira Junior (2016) ressalta que o ócio, nas Escrituras, não é apenas um tempo de pausa, mas uma prática carregada de significado.
Ele aparece como interrupção deliberada da rotina para permitir a memória, a reconexão com Deus e a renovação da identidade do povo.
As práticas de cessação descritas na Bíblia — como o sábado, as festas e os jubileus — cumprem uma função teológica fundamental: suspender o fluxo produtivo para dar lugar à escuta, à gratidão e à celebração. Trata-se de uma paragem orientada, não pela preguiça, mas pela fidelidade.
Esse ócio sagrado tem múltiplas dimensões. É tempo de ruptura, no qual se desativa a lógica utilitarista e se abre espaço para outros valores: a comunhão, a contemplação, a solidariedade. É também tempo de celebração, que envolve o corpo, os afetos e a comunidade reunida em louvor.
Além disso, o ócio bíblico cumpre uma função de ressignificação. Ele reorganiza a percepção do tempo, desloca o olhar da produção para a presença, da ansiedade para a confiança. Ao lembrar os feitos de Deus, o povo relembra também quem é, de onde veio e para onde caminha.
Por isso, o ócio, na tradição bíblica, não é uma fuga nem um desperdício, mas uma linguagem espiritual. É um modo de viver o tempo em sintonia com o ritmo de Deus — que cria, contempla, descansa e celebra. Um tempo que educa para a esperança e a gratidão.
Nesse sentido, o artigo mostra que o ócio não deve ser tratado como suspeita, mas como prática formativa. Ele constrói memória, comunidade e fé. Interrompe o fazer para nos lembrar de que somos mais do que aquilo que produzimos. Somos povo que celebra.
Considerações sobre o lazer moderno
Ao final de sua análise, Maciel, Carvalho e Vieira Junior (2016) propõem uma distinção conceitual importante entre o ócio bíblico e o lazer moderno.
Embora ambos se refiram a formas de vivência do tempo não produtivo, seus fundamentos, sentidos e propósitos são substancialmente distintos. Essa diferenciação evita confusões e amplia a compreensão crítica sobre o modo como utilizamos o tempo na sociedade contemporânea.
O lazer moderno, em geral, está fortemente ligado ao modelo econômico vigente. Ele é marcado por práticas de consumo, por agendas guiadas pela indústria cultural e por experiências que visam à distração e à compensação do esgotamento causado pelo excesso de trabalho. É o tempo livre como produto da lógica capitalista, subordinado às exigências da produtividade e à estética do desempenho.
Já o ócio, tal como aparece na tradição bíblica, não tem como finalidade o entretenimento ou a reposição de forças para o trabalho. Seu valor reside na possibilidade de interromper o ciclo da produção para viver experiências de celebração, memória, gratidão e reencontro com Deus.
É um tempo simbólico, comunitário e teológico — um tempo separado, não para consumo, mas para consagração.
Essa distinção se torna ainda mais relevante quando retomamos o que foi discutido no primeiro artigo da trilogia, “O discurso religioso como forma de poder: o controle do ócio nas práticas sociais”.
Lá, vimos como determinados discursos teológicos foram usados para negar o valor do ócio, associando-o à improdutividade, ao pecado ou à desordem moral. Essa repressão simbólica distorce a riqueza dos significados presentes nas Escrituras, onde o descanso é uma dimensão essencial da espiritualidade e da ética cristã.
Ao resgatar o ócio bíblico, Maciel, Carvalho e Vieira Junior revelam que há, sim, lugar legítimo para a pausa, para a festa e para a interrupção do trabalho no cotidiano de quem caminha com Deus. Essas práticas não são concessões frágeis à modernidade, mas expressões fundantes de uma teologia do tempo, centrada na graça, na liberdade e na memória.
O desafio, portanto, é discernir como viver o tempo com intencionalidade, sem sucumbir às armadilhas do produtivismo nem ao vazio do consumo. Trata-se de reencontrar, na tradição da fé, o direito de parar — não como falha moral, mas como fidelidade espiritual.
No próximo artigo da trilogia, será discutido o tema:
Cessação, contemplação e ética: o ócio como tempo legítimo na fé cristã — uma análise do ócio como paragem necessária, orientada por valores bíblicos e desvinculada de visões reducionistas ou moralizantes.
Fonte:
MACIEL, Marcos Gonçalves; CARVALHO, Mariana Nunes de; VIEIRA JUNIOR, Paulo Roberto. Análise do ócio segundo a perspectiva teológica protestante. In:
X SEMINÁRIO ÓCIO E CONTEMPORANEIDADE: ÓCIO: NOVAS PERSPECTIVAS PARA A INVESTIGAÇÃO NAS CULTURAS CONTEMPORÂNEAS, Universidade de Fortaleza, 19 e 20 de setembro de 2016.